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A epidemia de burnout entre médicos: o que a ciência mostra

Burnout deixou de ser apenas um “cansaço de plantão” e passou a ser descrito pela literatura médica como uma crise global entre profissionais de saúde. Em diferentes países, estudos mostram que algo entre 40% e 60% dos médicos apresentam sintomas clínicos de burnout em algum momento da carreira, com impacto direto na saúde mental, na segurança do paciente e na sustentabilidade dos sistemas de saúde.

Para além do conceito genérico de exaustão, hoje já existe um corpo robusto de evidências que quantifica essa epidemia, identifica fatores de risco específicos para médicos e aponta caminhos de prevenção em nível individual e institucional.

Burnout médico hoje: definição e instrumentos usados nos estudos

A maior parte dos estudos utiliza a definição clássica de Maslach para síndrome de burnout, estruturada em três dimensões:

  • Exaustão emocional: sensação de estar “no limite”, sem energia para seguir atendendo, mesmo após descanso.
  • Despersonalização: distanciamento afetivo e cinismo em relação a pacientes, colegas e ao próprio trabalho.
  • Baixa realização profissional: percepção de pouca eficácia, inutilidade ou dúvida constante sobre o próprio valor como médico.

Essas dimensões são avaliadas com instrumentos validados, como o Maslach Burnout Inventory (MBI) e o Oldenburg Burnout Inventory (OLBI), usados em dezenas de estudos com médicos, residentes e estudantes de medicina. Em 2019, a OMS passou a incluir burnout na CID-11 como um fenômeno ocupacional associado a estresse crônico no trabalho, reforçando o caráter sistêmico do problema.

Prevalência global: metade da categoria em algum grau de burnout

Números internacionais

Uma revisão sistemática e meta-análise recente, que incluiu dados de médicos de múltiplos países durante a pandemia de COVID-19, estimou uma prevalência global de burnout de 54,6% entre médicos. Na fase inicial da pandemia, a prevalência chegou a 60,7%, caindo para cerca de 49,3% em períodos mais tardios, ainda em patamar muito alto para qualquer categoria profissional.

Em países de alta renda, como Estados Unidos e Europa Ocidental, estudos nacionais com amostras amplas encontraram prevalências semelhantes: em torno de 45% a 55% dos médicos relatando ao menos um sintoma clínico de burnout nos últimos 12 meses, considerando ferramentas como MBI ou o Stanford Professional Fulfillment Index.

Dados recentes dos Estados Unidos

Nos Estados Unidos, uma série de pesquisas nacionais com médicos, conduzidas ao longo da última década, ajuda a enxergar a tendência da epidemia:

  • Em 2021, no auge da pandemia, cerca de 62,8% dos médicos relataram pelo menos um sintoma de burnout.
  • Em 2023, esse percentual caiu para 45,2%, um alívio relativo, mas ainda acima de níveis considerados aceitáveis para a segurança do paciente.
  • Relatórios oficiais sobre força de trabalho em saúde indicam que quase metade dos médicos segue com sentimentos frequentes de burnout, mesmo após a fase aguda da crise sanitária.
  • Em análises por especialidade, clínica/atenção primária aparece consistentemente entre as áreas com maior prevalência de burnout, frequentemente acima de 50%.

Esses dados convergem com a visão de sociedades médicas americanas: mesmo com alguma melhora pós-pandemia, o nível de exaustão segue cronicamente elevado quando comparado a outras profissões com grau semelhante de responsabilidade.

O retrato no Brasil

No Brasil, revisões da literatura e estudos multicêntricos também mostram prevalências importantes:

  • Publicações nacionais apontam que algo entre cerca de 20% e mais de 60% dos médicos avaliados preenchem critérios para burnout, a depender do contexto (hospital universitário, rede pública, atenção primária, emergência).
  • Um estudo com médicos brasileiros encontrou que aproximadamente 23,1% apresentavam alto grau de burnout, com variação ampla entre especialidades e locais de atuação.
  • Em um serviço brasileiro de saúde com profissionais de diferentes categorias, a prevalência de burnout diagnosticado chegou a quase 60%, com forte associação entre carga de trabalho elevada e níveis de exaustão emocional e despersonalização.
  • Pesquisas realizadas durante a pandemia mostraram aumento da prevalência de burnout em médicos, com crescimento em torno de 10–12 pontos percentuais na dimensão de exaustão emocional em comparação com o período pré-pandemia.
  • Em um estudo com médicos de uma capital da Região Norte, a prevalência de burnout alcançou 77,5%, com maior risco entre mulheres, profissionais com menos tempo de formados e que atuavam na linha de frente da COVID-19.

O quadro brasileiro adiciona ainda camadas como desigualdade regional, subfinanciamento crônico do sistema público, violência urbana e judicialização da medicina, que aparecem com frequência nos relatos qualitativos desses estudos.

Residentes e médicos em formação: uma curva de risco mais íngreme

Se a prevalência já é alta entre médicos formados, ela costuma ser ainda maior entre residentes e jovens médicos. Uma meta-análise recente, que avaliou mais de 22 mil residentes, estimou uma prevalência global de burnout em torno de 51%, com taxas particularmente elevadas em especialidades cirúrgicas, emergência e terapia intensiva.

Estudos brasileiros de residência médica apontam prevalências que variam em geral entre 20% e 40%, com alguns serviços chegando a valores próximos a 60%, especialmente em ambientes com plantões prolongados, grande volume assistencial e pouco suporte institucional para saúde mental.

Além da carga horária e da pressão por performance, os residentes lidam com fatores adicionais:

  • transição abrupta da vida acadêmica para a responsabilidade direta sobre desfechos de pacientes;
  • avaliações constantes, ambiente hierárquico rígido e, em alguns casos, episódios de assédio e humilhação;
  • dívidas educacionais e insegurança financeira no início da carreira;
  • dificuldade de manter rotinas mínimas de sono, alimentação e atividades físicas.

Não surpreende que, em vários estudos, burnout em residentes se associe a maior risco de sintomas depressivos, ideação suicida e intenção de abandonar a especialidade escolhida.

Por que burnout não é apenas “um problema pessoal”

Do ponto de vista científico, burnout não interessa apenas porque adoece médicos, mas porque altera o desempenho de sistemas inteiros de saúde. Meta-análises com dezenas de estudos e dezenas de milhares de médicos mostram uma associação consistente entre burnout e:

  • erros médicos e incidentes de segurança: médicos com burnout têm aproximadamente o dobro de chance de relatar erros significativos no cuidado, em comparação com colegas sem burnout;
  • qualidade de cuidado e profissionalismo: burnout se associa a maior probabilidade de comportamentos considerados não-profissionais, menor adesão a diretrizes clínicas e pior qualidade percebida de atendimento;
  • satisfação do paciente: serviços com maior prevalência de burnout entre médicos tendem a ter piores indicadores de experiência do paciente;
  • turnover e intenção de abandono: burnout aumenta de forma importante a chance de o médico considerar deixar a instituição ou a profissão, o que impacta custos de reposição e continuidade assistencial.

Em um estudo com mais de 40 mil médicos, burnout se associou a aproximadamente duas vezes mais odds de desfechos como cuidado inseguro, baixa satisfação do paciente e comportamentos pouco profissionais. Em outra coorte, médicos com burnout tiveram mais que o dobro de probabilidade de relatar erro médico relevante nos três meses anteriores, mesmo após ajuste para outras variáveis.

Quando olhamos para residentes, a associação entre burnout e erro também aparece: em análises recentes, burnout em residência se relacionou a odds aumentadas de erros de prescrição e outros tipos de erro clínico, reforçando a ideia de ciclo: mais burnout, mais erro, mais sofrimento moral e ainda mais burnout.

Principais fatores de risco identificados na literatura

Os fatores de risco para burnout em médicos podem ser organizados em três blocos principais: condições de trabalho, fatores organizacionais e contexto individual.

Condições de trabalho

  • Carga horária excessiva: jornadas prolongadas, plantões sequenciais, horas extras frequentes e pouco controle sobre a agenda.
  • Alta pressão assistencial: grande volume de pacientes, complexidade elevada e sensação de “produção em linha de montagem”.
  • Exposição prolongada a sofrimento e morte: comum em emergência, UTI, oncologia, infectologia e saúde pública em contextos de epidemia.
  • Violência e conflitos: agressões verbais, ameaças, processos, conflitos constantes com familiares ou gestores.

Fatores organizacionais

  • Burocracia e sistemas digitais pouco amigáveis: prontuários eletrônicos mal desenhados, excesso de cliques, duplicidade de registros.
  • Baixa autonomia: pouca participação em decisões de escala, protocolos ou políticas assistenciais.
  • Cultura punitiva: ambientes em que erro é tratado apenas como falha individual, sem olhar para o sistema.
  • Suporte institucional insuficiente: ausência de programas estruturados de apoio psicológico, supervisão e mentoria.

Estudos em países latino-americanos, incluindo o Brasil, mostram que aumento de carga de trabalho se associa de forma independente a maior risco de exaustão emocional e despersonalização. Em algumas análises, trabalhar mais horas, em especialmente em ambientes de alta demanda, quase dobra a probabilidade de burnout em comparação a cargas menores.

Fatores individuais e de carreira

  • Início de carreira: médicos mais jovens e residentes costumam ter prevalências mais altas de burnout.
  • Gênero: vários estudos apontam maior risco entre médicas, em parte devido à dupla jornada e às expectativas sociais de cuidado.
  • História prévia de transtornos mentais: depressão e ansiedade aumentam a vulnerabilidade.
  • Baixa rede de apoio: isolamento social e falta de suporte familiar ou entre pares.

Alguns fatores aparecem de forma consistente como potenciais protetores: ter filhos, ser casado ou morar com a família, além de sentir alto nível de suporte da equipe e da chefia imediata.

O que funciona: intervenções com base em evidências

Nenhuma intervenção isolada “resolve” burnout, mas a literatura já consegue apontar estratégias com resultados mais consistentes. Em linhas gerais, mudanças organizacionais tendem a ter impacto maior e mais duradouro do que intervenções focadas apenas no indivíduo.

Intervenções organizacionais

  • Redesenho da carga de trabalho: limitar número de plantões consecutivos, reduzir horas excessivas e garantir pausas reais durante o turno.
  • Melhoria de processos e prontuário eletrônico: revisão de fluxos, redução de cliques desnecessários, delegação de tarefas administrativas para equipes de apoio.
  • Espaços estruturados de escuta: rounds de debriefing, grupos Balint, reuniões regulares para discutir casos difíceis e sofrimento moral.
  • Cultura de segurança psicológica: ambiente em que o médico se sente seguro para falar sobre erros, limites e sobrecarga sem medo imediato de punição.

Intervenções individuais e de equipe

  • Psicoterapia e psiquiatria: acesso facilitado, idealmente com confidencialidade protegida em relação à instituição.
  • Programas de mindfulness, ACT e manejo de estresse: várias pesquisas mostram redução moderada de exaustão emocional e sintomas ansiosos quando esses programas são bem estruturados.
  • Atividade física regular: embora óbvia, segue como uma das intervenções com melhor custo-benefício em saúde mental, com evidência crescente em médicos e residentes.
  • Construção de rede de apoio entre pares: grupos de colegas que se encontram periodicamente para falar de casos, carreira e vida pessoal.

Importante: a literatura é clara ao mostrar que não se trata de “ensinar o médico a ser mais resiliente” enquanto o ambiente continua tóxico. Programas individuais funcionam melhor quando caminham junto com mudanças reais em carga de trabalho, processos e cultura organizacional.

Por onde começar, como médico, sem ignorar o sistema

Nenhum médico individual consegue reformar um sistema de saúde inteiro, mas alguns passos práticos costumam fazer diferença:

  • avaliar o próprio nível de exaustão de forma honesta, usando escalas curtas de triagem ou conversando com um profissional de saúde mental;
  • buscar ajuda cedo, sem esperar um colapso completo para procurar psicoterapia ou atendimento psiquiátrico;
  • negociar limites sempre que possível (número de plantões, sobreaviso, tarefas burocráticas deslocáveis);
  • reconectar-se com fontes de sentido na prática médica: tipos de paciente, áreas, projetos ou formatos de cuidado que despertam mais propósito;
  • cultivar pequenas âncoras de recuperação diária: sono minimamente protegido, atividade física, alimentação menos caótica, micro pausas ao longo do dia;
  • participar de iniciativas coletivas de melhoria institucional, mesmo que em escala local (serviço, residência, departamento).

Onde entra a bip nessa conversa

Nenhuma roupa resolve burnout. Ao mesmo tempo, a literatura sobre ergonomia, fadiga e desempenho em ambientes de alta exigência mostra que reduzir atritos do cotidiano ajuda a preservar energia mental para decisões que realmente importam.

Na bip, a proposta é desenhar scrubs, jalecos e acessórios que removem parte desses atritos: tecidos tecnológicos que não encharcam nem amassam com facilidade, bolsos que organizam o que você carrega o dia inteiro, caimentos que permitem movimentos extensos sem desconforto. São detalhes que não substituem políticas de bem-estar, mas podem contribuir para uma rotina um pouco menos hostil em plantões, consultas e cirurgias.

Cuidar de burnout exige olhar sistêmico, compromisso institucional e abertura para falar sobre sofrimento sem tabu. Mas exige também lembrar que quem cuida do mundo precisa se sentir minimamente cuidado no próprio corpo. E, se a jornada já é dura por natureza, tudo o que reduz fricção e devolve um pouco de conforto e confiança também faz parte da solução.

Conclusão

A epidemia de burnout entre médicos não é uma metáfora: é um fenômeno medido, com prevalências que frequentemente ultrapassam a metade da categoria em diferentes contextos, inclusive no Brasil. As consequências vão muito além do indivíduo, afetando segurança do paciente, qualidade de cuidado, custos e capacidade de retenção de profissionais.

Ao mesmo tempo, o avanço científico na área trouxe clareza sobre fatores de risco, grupos vulneráveis e intervenções que funcionam melhor. Esse conhecimento permite sair da lógica de culpabilização individual e avançar para uma agenda real de prevenção e cuidado – que envolve instituições, gestores, equipes e cada médico na construção de limites mais saudáveis.

Se você se reconhece em alguns dos sinais descritos aqui, isso não é falha de caráter nem falta de vocação. É um sinal de que o sistema em que você atua está cobrando mais do que é humanamente sustentável. Procurar ajuda, exigir condições melhores e cuidar de pequenas rotinas de proteção não é fraqueza, é sobrevivência. E, se a bip puder, em paralelo, tornar a sua rotina física um pouco mais leve, esse também é um passo na direção de uma medicina em que quem cuida não precisa se destruir para seguir cuidando.

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